DECRETO N. 966 - DE 7 DE NOVEMBRO DE 1890
Autoriza a Empreza das Obras de Melhoramentos do Porto de Santos, no Estado de S. Paulo, a prolongar o caes em construcção e proroga e prazo das concessões constantes dos decretos ns. 9979 de 12 de julho de 1888 e 10.277 de 30 de julho de 1889.
O Generalissimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, resolve, deferindo a representação feita pela Intendencia Municipal da cidade de Santos, no Estado de S. Paulo, autorizar a Empreza Constructora das Obras de Melhoramentos do Porto de Santos a prolongar o caes, em via de execução, desde a Alfandega até ao logar denominado Paquetá, concedendo á mesma empreza a prorogação do prazo para o uso e gozo das referidas obras por 90 annos, contados da presente data, tudo de accordo com os decretos ns. 9979 de 12 de julho de 1888 e 10.277 de 30 de julho de 1889, e nos termos das clausulas que com este baixam assignadas por Francisco Glicerio, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, que o faça executar.
Sala das sessões do Governo Provisorio, 7 de novembro de 1890, 2º da Republica.
Manoel Deodoro da Fonseca.
Francisco Glicerio.
Clausulas a que se refere o decreto n. 966 desta data
I
Ficam autorizados os concessionarios das obras de melhoramentos do porto de Santos a prolongar as obras do caes, concedidas pelos decretos ns. 9979 de 12 de julho de 1888 e 10.277 de 30 de julho de 1889, até ao logar denominado Paquetá. Para a execução destas obras ficam approvadas a planta apresentada em 10 de julho de 1886 pelo engenheiro Domingos Sergio de Saboia e Silva e o respectivo orçamento na importancia de 1.438:867$980.
II
Da Capitania até Paquetá, em seguimento ao caes de carga e descarga, construirão os concessionarios um aterro e caes de revestimento com pedras grandes arrumadas sem argamassa, sendo apenas tomadas a cimento as juntas e corôas.
No logar mais apropriado do prolongamento entre a rua Braz Cubas e a Capitania será construida pelos mesmos concessionarios uma doca destinada ao mercado de peixe, com entrada por baixo das linhas de trilhos, entrada esta que nas marés minimas deverá dar passagem a embarcações de 0m,80 de calado.
Serão mais construidos pelos referidos concessionarios em toda a extensão do prolongamento, agora autorizado, armazens para mercadorias, guindastes, telheiros, linhas ferreas, desvios e outros melhoramentos para o serviço do caes.
III
Os concessionarios de accordo com a Intendencia Municipal, farão o serviço provisorio necessario ao saneamento da parte do littoral comprehendida no prolongamento ora autorizado, até que tenham concluido todas as obras mencionadas nas clausulas anteriores.
IV
De todas as obras ainda não estudadas, dos armazens, casas de machinas, telheiros, guindastes e mais trabalhos apresentarão os concessionarios plantas e orçamentos; sendo para as obras do caes, desde a Capitania até Paquetá, marcado o prazo de seis mezes desta data e para as demais quando tiverem de proceder á sua construcção.
V
A construcção de todo o caes deve estar terminada dentro do prazo de cinco annos, contados da presente data, exceptuados os armazens que serão construidos á proporção das necessidades do commercio.
VI
Gozarão os concessionarios durante todo o prazo do seu privilegio que fica elevado a noventa annos, contados da data deste decreto, de isenção de direitos para todos os materiaes necessarios á construcção e conservação das obras do porto e dos armazens que tiverem de edificar nos terrenos desapropriados, nos de marinhas e aterrados, incluindo o combustivel para o funccionamento das machinas precisas ao serviço do porto e movimento das mercadorias.
VII
Os concessionarios empregarão quanto possivel o cimento nacional em todas as suas obras, caso alguma fabrica se proponha fornecel-o em igualdade de condição, de preço e de qualidade, a juizo da commissão fiscal do Governo. Si o preço do genero estrangeiro for inferior ao do producto nacional, serão obrigados os concessionarios a ceder ao Governo, pelo mesmo preço por que comprarem, a quantidade que for por este requisitada.
VIII
Findo o prazo do privilegio reverterão para o Estado Federal todas as obras do caes, comprehendendo os armazens, linhas ferreas e todo o terreno que for adquirido pelos concessionarios, que nenhum direito terão á qualquer indemnização, devendo tudo achar-se em bom e perfeito estado de conservação.
Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1890. - Francisco Glicerio.
Generalissimo - O Governo Provisorio, no desempenho da missão que tomou aos hombros, propôz ao paiz uma Constituição livre, que, para firmar as instituições democraticas em solidas bases, só espera o julgamento dos eleitos da nação.
Outras leis vieram successivamente acudir aos diversos ramos da actividade nacional, que só dependiam desse concurso, para produzir seus beneficos resultados em proveito do desenvolvimento commum.
Faltava ao Governo coroar a sua obra com a mais importante providencia, que uma sociedade politica bem constituida póde exigir de seus representantes.
Referimo-nos á necessidade de tornar o orçamento uma instituição inviolavel e soberana, em sua missão de prover ás necessidades publicas mediante o menor sacrificio dos contribuintes, á necessidade urgente de fazer dessa lei das leis uma força da nação, um systema sabio, economico, escudado contra todos os desvios, todas as vontades, todos os poderes que ousem perturbar-lhe o curso traçado.
Nenhuma instituição é mais relevante, para o movimento regular do mecanismo administrativo e politico de um povo, do que a lei orçamentaria. Mas em nenhuma tambem ha maior facilidade aos mais graves e perigosos abusos.
O primeiro dos requisitos para a estabilidade de qualquer fórma de governo constitucional consiste em que o orçamento deixe de ser uma simples combinação formal, como mais ou menos tem sido sempre, entre nós, e revista o caracter de uma realidade segura, solemne, inaccessivel a transgressões impunes.
Cumpre acautelar e vencer esses excessos, quer se traduzam em attentados contra a lei, inspirados em aspirações oppostas ao interesse geral, quer se originem (e são estes porventura os mais perigosos) em aspirações de utilidade publica, não contidas nas raias fixadas á despeza pela sua delimitação parlamentar.
Tal foi sempre, desde que os orçamentos deixaram de ser l'état du roi, o empenho de todas as nações regularmente organizadas.
Não é, todavia, commum o habito de execução fiel do orçamento, ainda entre os povos que deste assumpto poderiam dar-nos ensinamento proveitoso.
O deficit, com que se encerram quasi todas as liquidações orçamentarias entre nós, e os creditos supplementares, que, deixando de ser excepção, constituem a regra geral, a immemorial tradição, formando todos os annos um orçamento duplo, mostram quanto estão desorganizadas as nossas leis de finanças, e quão pouco escrupulo tem presidido á concepção e execução dos nossos orçamentos.
Cumpre á Republica mostrar, ainda neste assumpto, a sua força regeneradora, fazendo observar escrupulosamente, no regimen constitucional em que vamos entrar, o orçamento federal.
Si não se conseguir este desideratum; si não pudermos chegar a uma vida orçamentaria perfeitamente equilibrada, não nos será dado presumir que hajamos reconstituido a patria, e organizado o futuro.
E', entre nós, o systema de contabilidade orçamentaria defeituoso em seu mecanismo e fraco na sua execução.
O Governo Provisorio reconheceu a urgencia inadiavel de reorganizal-o; e a medida que vem propôr-vos é a creação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediaria á administração e á legislatura, que, collocado em posição autonoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaesquer ameaças, possa exercer as suas funcções vitaes no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato apparatoso e inutil.
Só assim o orçamento, passando, em sua execução, por esse cadinho, tornar-se-ha verdadeiramente essa verdade, de que se falla entre nós em vão, desde que neste paiz se inauguraram assembléas parlamentares.
Já em 1845 entrava na ordem dos estudos parlamentares um projecto de Tribunal de Contas, traçado em moldes então assaz arrojados por um dos maiores ministros do Imperio: Manoel Alves Branco.
Eis os termos em que se concebia essa proposta do Governo:
«Art. 1º Além do Tribunal do Thesouro haverá na Capital do Imperio outra estação de Fazenda, que será denominada - Tribunal de Contas.
«Art. 2º Este Tribunal será composto de um presidente e tres vogaes, os quaes terão os mesmos ordenados e honras, assim como serão nomeados, da mesma maneira que o vice-presidente, e mais membros do Tribunal do Thesouro.
«Art. 3º O procurador fiscal do Tribunal do Thesouro, e seu ajudante, exercerão perante o Tribunal de Contas as mesmas funcções que exercem perante o Tribunal do Thesouro.
«Art. 4º O Tribunal terá tambem um secretario, o qual, como o do Tribunal do Thesouro, assistirá ás suas sessões, tomará nota dos votos dos vogaes, lançará os despachos, e finalmente escreverá as actas, e fará tudo o mais que lhe for ordenado pelo presidente.
«Art. 5º Serão annexas ao Tribunal de Contas uma Secretaria e tres Contadorias. A Secretaria terá por chefe o secretario do Tribunal, e por officiaes dous escripturarios, e dous praticantes; cada uma das tres Contadorias porém terá por chefe um contador, e por officiaes dous primeiros escripturarios, dous segundos, e quatro praticantes.
«Art. 6º Todos estes empregados serão nomeados pelo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda, e terão de ordenado, os chefes 2:400$, os primeiros escripturarios 1:200$ e os segundos escripturarios 800$000.
«Art. 7º A Secretaria terá a seu cargo a correspondencia e expedição das ordens do Tribunal, assim como o livro do assentamento de todos os responsaveis por contas, os quaes não poderão tomar posse de seus logares sem mostrar certidão do assentamento nessa Repartição; cada Contadoria porém terá a seu cargo, por distribuição do presidente do Tribunal, o exame e liquidação de um dos tres ramos de contas seguintes, a saber:
«1ª Contas das repartições pertencentes ao Ministerio da Fazenda.
«2ª Contas das repartições pertencentes aos Ministerios da Guerra e Marinha.
«3ª Contas das repartições pertencentes aos Ministerios da Justiça, Imperio e Estrangeiros.
«Art. 8º São negocios da competencia do Tribunal, e que por isso ficam separados do Tribunal do Thesouro:
«1º Julgar annualmente as contas de todos os responsaveis por contas, seja qual for o Ministerio a que pertençam, mandando-lhes dar quitação, quando correntes, e condemnando-os, quando alcançados, a pagarem o que deverem, dentro de um prazo improrogavel, de que se dará parte ao Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda, para mandar proceder contra elles na fórma das leis, si o não fizerem.
«2º Marcar aos responsaveis, por dinheiros publicos, o tempo em que devem apresentar suas contas ao secretario do Tribunal; suspendendo os omissos, mandando prender os desobedientes e contumazes, e finalmente julgando á sua revelia as contas que tiverem de dar, pelos documentos que tiver, ou puder obter de quaesquer cidadãos, autoridades ou repartições publicas.
«Art. 9º O Tribunal de Contas é competente para julgar das provas de facto, deduzidas por documentos justificativos, de quaesquer perdas de dinheiros publicos por casos fortuitos ou força maior; mas si no exame de qualquer conta reconhecer que o responsavel commetteu no exercicio de suas funcções dolo, falsidade, concussão ou peculato, dará parte ao Ministro da Fazenda para mandar proceder contra o mesmo na fórma das leis.
«Art. 10. O Tribunal de Contas poderá delegar nas Thesourarias provinciaes, ou em commissões do empregados habeis, que para esse fim sejam mandados ás provincias, o conhecimento em primeira instancia das contas de qualquer responsavel por dinheiros publicos nas mesmas provincias, á excepção sómente dos inspectores de Fazenda, e thesoureiros geraes.
«Art. 11. O modo de proceder do Tribunal e repartições annexas, será o seguinte, a saber: as contas apresentar-se-hão primeiro na Secretaria, donde serão remettidas á Contadoria respectiva. O contador a fará examinar por dous officiaes, tanto no que respeita ao calculo arithmetico, como no que respeita á legalidade da arrecadação ou da despeza, remettendo-a outra vez com um relatorio seu á Secretaria. Recebida a conta, o secretario a entregará na proxima sessão do Tribunal ao presidente, que a distribuirá a um dos vogaes, o qual, depois de a examinar o fazer examinar pelos outros, a relatará em uma das sessões seguintes para ser discutida e decidida.
«Art. 12. A decisão do Tribunal de Contas será tomada por maioria absoluta de votos, mas o Tribunal não poderá deliberar sem que estejam presentes tres membros, inclusive o presidente.
«Art. 13. O Tribunal póde proceder á revisão de uma conta já julgada, ou seja a pedido do responsavel, sustentado por documentos justificativos havidos depois da sentença, ou seja ex-officio, por erro, omissão, ou duplicata reconhecida no exame de outras contas; esta revisão porém não suspende o effeito da primeira sentença.
«Art. 14. Si ainda depois de uma revisão o responsavel se julgar com direito de recorrer contra a decisão do Tribunal, por violação de lei ou regulamento, poderá fazel-o perante o Conselho de Estado, que decidirá a questão com voto deliberativo, não se dando mais logar a recurso algum.
«Art. 15. O Tribunal poderá tambem fazer subir consultas a S. M. I., á requisição de qualquer de seus membros, ou do procurador fiscal, principalmente tratando-se de abonar despezas secretas, que apparecerão em alguma conta, ou outros negocios, que pela sua importancia e gravidade pareçam merecer a imperial resolução, que será logo executada.
«Art. 16. O Tribunal, no exercicio de suas funcções, se corresponderá directamente, por intermedio de seu presidente, com todas e quaesquer autoridades do Imperio, as quaes todas são obrigadas a cumprir suas requisições ou ordens, sob pena da mais restricta responsabilidade.
«Art. 17. O Tribunal apresentará todos os annos, dentro do primeiro mez da sessão legislativa, a S. M. I. e ao Corpo Legislativo um relatorio, no qual não só confira o balanço apresentado pelo Governo no anno anterior com as contas tomadas a elle relativas, justificando-as umas pelas outras, como tambem se apresentem todas as irregularidades, omissões e abusos que tiver encontrado na arrecadação, fiscalização e distribuição dos dinheiros publicos, e os defeitos das leis e regulamentos que parecerem necessitar de reforma.
«Art. 18. O primeiro trabalho do Tribunal, depois de installado, será o recopilar das leis e regulamentos actuaes o que lhe parecer util para a tomada das contas, apontando o que for inapplicavel ao estado actual para ser eliminado ou reformado com novas providencias este trabalho será apresentado ao Ministro da Fazenda, que fica autorizado a approval-o provisoriamente, sujeitando-o depois á Assembléa Geral Legislativa para definitiva approvação.
«Art. 19. Ficam revogadas todas as leis em contrario.
«Rio de Janeiro, 10 de julho de 1845. - Manoel Alves Branco.»
Submettido á commissão de fazenda na Camara dos Deputados, foi ella de parecer, aos 6 de agosto daquelle anno (n. 152), que a proposta do Governo se convertesse em projecto de lei, apenas com esta emenda ao art. 2º:
«Depois da palavra - Thesouro - accrescente-se: - e depois de nomeados não poderão mais perder os seus logares sem resolução da Assembléa Geral, á excepção do presidente, cujo cargo será de simples nomeação temporaria.»
Mas, como não é de estranhar, attenta a importancia do assumpto, a idéa adormeceu, na mesa da Camara, desse bom somno de que raramente acordavam as idéas uteis, especialmente as que podiam crear incommodos á liberdade da politicagem eleitoral. E quarenta e cinco annos deixou a monarchia entregue o grande pensamento ao pó protector dos archivos parlamentares.
Mas para a edificação republicana esta reforma deve ser uma das pedras fundamentaes.
A necessidade de confiar a revisão de todas as operações orçamentarias da receita e despeza a uma corporação com as attribuições que vimos de expôr, está hoje reconhecida em todos os paizes, e satisfeita em quasi todos os systemas de governo estabelecidos, que apenas divergem quanto á escolha dos moldes; havendo não menos de quatorze constituições, onde se consigna o principio do Tribunal de Contas.
Dous typos capitaes discriminam essa instituição, nos paizes que a teem adoptado: - o francez e o italiano. O primeiro abrange, além da França, os dous grandes Estados centraes da Europa, a Suecia, a Hespanha, a Grecia, a Servia, a Romania e a Turquia. O segundo, além da Italia, domina a Hollanda, a Belgica, Portugal ha quatro annos, o Chile ha dous e, de recentes dias, o Japão. No primeiro systema a fiscalização se limita a impedir que as despezas sejam ordenadas, ou pagas, além das faculdades do orçamento. No outro a acção dessa magistratura vae muito mais longe: antecipa-se ao abuso, atalhando em sua origem os actos do poder executivo susceptiveis de gerar despeza illegal.
Dos dous systemas, o ultimo é o que satisfaz cabalmente os fins da instituição, o que dá toda a elasticidade necessaria ao seu pensamento creador. Não basta julgar a administração, denunciar o excesso commettido, colher a exorbitancia, ou a prevaricação, para as punir. Circumscripta a estes limites, essa funcção tutelar dos dinheiros publicos será muitas vezes inutil, por omissa, tardia, ou impotente. Convem levantar, entre o poder que autoriza periodicamente a despeza e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, communicando com a legislatura, e intervindo na administração, seja, não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infracções orçamentarias por um veto opportuno aos actos do executivo, que directa ou indirecta, proxima ou remotamente discrepem da linha rigorosa das leis de finanças.
A lei belga de 27 de outubro de 1846, que rege a contabilidade publica, prescreve, no art. 14, que «o Thesouro não cumprirá ordem de despeza, antes de visada pelo Tribunal de Contas». Firmado nessa disposição e nos debates parlamentares que a crearam, o Tribunal de Contas, na Belgica, exerce a maior latitude de poderes na apreciação dos elementos justificativos das ordens de despeza submettidas ao seu visto, e não o dá sinão após o mais completo exame, depois de perscrutados todos os documentos necessarios para lhe esclarecer a consciencia, e autorizar as observações, que, na fórma da Constituição, houver de fazer, sobre o assumpto, ás camaras legislativas.
A lei italiana, porém, dá a essa prerogativa uma expansão muito mais forte, muito mais ampla, generalizando a audiencia do Tribunal de Contas, não só nos actos do poder executivo que digam respeito ao orçamento do Estado, e influam sobre a receita, ou a despeza, como a todas e quaesquer deliberações do governo, todos os decretos reaes, seja qual for o ministerio, de que emanem, e o objecto, a que se refiram. Taes são os termos da lei organica dessa instituição, naquelle paiz, a lei de 14 de agosto de 1862, no art. 13. E, para dar idéa da severidade crescente, com que alli se aprofunda a observancia dessa disposição, basta consignar que o numero de decretos reaes submettidos ao visto do tribunal subiu, em 1877, a 24.000; em 1878, a 45.000; em 1879, a 49.000; em 1880, a 51.782.
Parece, porém, que essa evolução, a que se chegou, na fórma italiana, levando a superintendencia do Tribunal de Contas (Corte dei Conti), além da fronteira dos actos concernentes ás finanças publicas, força a natureza da instituição, sujeitando-a a criticas, de que não seria susceptivel, si se lhe tivessem limitado as funcções ao circulo dos actos propriamente financeiros do governo. Transpondo essa divisoria, o tribunal poderia converter-se em obstaculos á administração, difficultando improficuamente a acção ministerial, e annullando a iniciativa do governo, em actos que não entendem com o desempenho do orçamento. Na Italia o criterio do pessoal a que tem sido confiada essa magistratura, evitou, até hoje, em geral, esse inconveniente, abstendo-se o tribunal de exercer as suas pesquizas em assumptos alheios ás finanças do Estado. Mas não é de bom aviso insinuar no organismo de uma instituição um principio de conflicto com outras, confiando o remedio do mal organico á prudencia accidental dos individuos que a representarem.
Melhor é encerrar a nova autoridade no limite natural das necessidades que a reclamam, isto é, reduzir a superintendencia preventiva do Tribunal de Contas aos actos do governo, que possam ter relação com o activo ou o passivo do Thesouro.
Estabelecida esta resalva, o modelo italiano é o mais perfeito.
Quando o Tribunal de Contas, na Italia, como na Belgica, reconhece contrario ás leis, ou aos regulamentos, um dos actos, ou decretos, que se lhe apresentam, recusa o seu visto, em deliberação motivada, que o presidente transmitte ao ministro interessado. Si este persiste na sua resolução, cumpre-lhe appellar para o ministerio em conselho. Si a deliberação deste se conforma com a do ministro, o tribunal procede a novo exame do assumpto, reunidas todas as secções; e, então, ou aceita a deliberação ministerial, reconhecendo-lhe a procedencia, ou, quando não se conforme, ordena o registro, pondo ao acto o seu visto sob reserva (il visto con riserva), e communicando o seu procedimento aos presidentes do senado e da camara dos deputados.
Essa communicação, nos termos da lei de 1862, art. 18, effectuava-se annualmente em janeiro, epoca em que o tribunal havia de submetter ás duas casas do parlamento a lista geral dos vistos sob reserva. Mais tarde, porém, se entendeu que essa relação annual era demasiado serodia, para a efficacia da acção parlamentar sob a responsabilidade ministerial; e, em consequencia, a lei de 15 de agosto de 1867 prescreveu que essas informações seriam apresentadas ás mesas das duas camaras todas as quinzenas, afim de que o corpo legislativo pudesse sobrestar logo na execução dos decretos censurados pelo Tribunal de Contas, que em si contivessem realmente illegalidade; ficando por essa lei estatuida a precaução, para obviar tardanças originadas na má vontade ministerial, de que essas communicações se fariam directamente entre o tribunal e as camaras.
Todos estes dados são elementos de valor inestimavel e de impreterivel necessidade no mecanismo da instituição que temos em mira. Conspiram todos elles em firmar a jurisdicção preventiva, caracteristica essencial dessa organização ao estado de excellencia a que a Belgica e a Italia a elevaram, e que hoje reclamam para a França as vozes mais competentes no assumpto. «Vale infinitamente mais», dizem os italianos, «prevenir os pagamentos illegaes e arbitrarios do que censural-os depois de effectuados. A contrasteação posterior basta em relação aos agentes fiscaes; porque estes prestam cauções, que lhes tornam efficaz a responsabilidade, em defesa do Thesouro. Mas os ministros não dão fiança, por onde assegurem ao Estado a reparação do damno, que causarem, e, portanto, é mister uma garantia preliminar, a qual vem a ser precisamente a que se realiza na fiscalização preventiva do tribunal.» (GIOVANI GEAN-QUINTO: Corso di diritto amministrativo.) O systema da verificação preventiva decorre, segundo elles, dos direitos organicos do parlamento, que «não deve descançar exclusivamente na fidelidade do ministerio.» (UGO: La Corte dei Conti, 1882. Tit. I, c. I, a 1.)
Na Italia, dizia o general Menabréa, «a responsabilidade ministerial não está definida. Nada a sancciona. Releva, por consequencia, buscar alhures e noutros principios as garantias, em que o paiz deve apoiar a regularidade da administração da fortuna do Estado.»
Não será ainda peior a situação de nós outros? Onde a responsabilidade ministerial contra os abusos orçamentarios, no regimen passado, durante quasi tres quartos de seculo de monarchia parlamentar?
A Republica presidencial, a este respeito, não nos dará condições mais favoraveis: não tem, no seu organismo, elementos superiores para a consecução desse resultado, que de nenhuma fórma de governo se poderá jámais obter, no paiz que não souber dotar-se com esta instituição robusta e preservadora. No regimen americano, com effeito, que esperamos ver perfilhado pelo Congresso Constituinte, as camaras não teem meios mais seguros de oppôr mão repressiva ou preventiva aos abusos dos ministros. Nem a responsabilidade politica do presidente, nem a responsabilidade judiciaria dos seus secretarios de estado nos livrarão de excessos e abusos na delicada materia das finanças federaes, si não enriquecermos a nossa Constituição nova com esta condição suprema da verdade pratica nas cousas do orçamento. Nada teremos feito, em tão melindroso assumpto, o de mais alto interesse, entre todos, para o nosso futuro, emquanto não erguermos a sentinella dessa magistratura especial, envolta nas maiores garantias de honorabilidade, ao pé de cada abuso, de cada germen ou possibilidade eventual delle.
«Si ha cousa, que contenha os administradores no declive de actos arbitrarios,» - dizia, no senado italiano, o ministro das finanças, em março de 1862, - «si ha cousa, que nos inhiba de ceder a postulantes importunos, á gente cujas pretensões não cessam de acarretar novas despezas, e transbordar os recursos facultados pelo orçamento, é o espectro do Tribunal de Contas. Todo o dia, a toda a hora, muitas vezes na mesma hora, um ministro, um secretario geral, todos os que teem relações com a administração affluem a solicitar novas despezas. Não é facil resistir! Muitas vezes os pretendentes mesmos não creem na utilidade dellas, e apenas as propoem impellidos por outros, que os seguem; mas, dada a força da autoridade dos intercessores, a consequencia é que, resistindo-se-lhes uma ou duas vezes, ha de acabar-se por ceder.»
Stourm, o celebre professor de finanças, uma das mais solidas autoridades européas, pugnando pela reforma do Tribunal de Contas francez no sentido do modelo italiano, adverte, como em relação a nós igualmente poderiamos fazer, que, si este systema funccionasse em França, os frequentes excessos de creditos, ainda recentemente averiguados, não se teriam dado naquelle paiz.
«O systema preventivo», diz elle, «teria, ao primeiro movimento, reprimido os ministros da guerra e da marinha na pratica de encommendas excedentes á medida dos creditos legislativos, em que se firmavam.» (STOURM: Le Budget, p. 601.) E rememora, em apoio da asserção, este facto eloquente: «Aos 20 de janeiro de 1886, o ministro da marinha reduzira proprio motu, por um simples aviso, tres annos no limite de idade para a aposentadoria do pessoal civil de sua repartição. O effeito immediat foi a aposentação prematura de 62 funccionarios, pertencentes quasi todos ao quadro superior, e cujas pensões levaram a despeza a ultrapassar os creditos legislativos. Posto que a camara censurasse incidentemente a medida logo nos fins de 1886, o ministro nem por isso deixou de manter, até a sua exoneração, isto é, até julho de 1887, o acto irregular. Dahi resultou, no credito respectivo, um excesso de 547.516 francos, que um projecto de lei de creditos supplementares se propôz a cobrir no fim de 1888. As camaras indignaram-se, á revelação dos factos que motivavam esse supplemento de credito. Não hesitaram em verberar energicamente o ministro, declarando, até, platonicamente, que a sua responsabilidade ficava empenhada. Mas dahi não passaram. Já se achavam em presença de outro ministro; o mal estava consummado, e os aposentados aguardavam a liquidação de suas pensões. Votaram-se, pois, os creditos supplementares. E' sempre a solução inevitavel. Na Italia, a verificação preventiva teria, desde o primeiro momento, recusado existencia ao acto do governo, cuja execução o ministro francez pôde sustentar emquanto ministro. Apenas manifestado, esse acto esbarraria no visto do Tribunal de Contas, que, examinando-o emquanto ás suas consequencias orçamentarias, e reconhecendo immediatamente promover elle despezas superiores aos creditos decretados, ter-lhe-hia negado registro. Ninguem contestará que esse veto preliminar, prevenindo o damno, seria preferivel a impotentes recriminações retrospectivas.» Ibid.
Outro facto, notavel neste genero, é o caso das torpedeiras, occorrido ha dous annos. O orçamento da despeza do Ministerio da Marinha dotara a verba de compras de vasos á industria particular e compras de torpedeiras, para o exercicio de 1888, com um credito de 6.800.000 frs. No fim do exercicio, porém, se verificou que o Governo despendera, sob essas duas consignações, 15.040.000 frs., isto é, que se haviam excedido em 8.240.000 frs. os limites fixados na lei. Todas as opiniões a uma condemnaram o procedimento do Ministerio da Marinha. Houve, até, representantes da nação, que, apoiando-se na lei de 15 de maio de 1850, envidaram esforços em promover a responsabilidade pecuniaria do Ministro. Mas nada contra elle se fez. Pelo contrario, o abuso acabou por obter a sancção legislativa em um voto de creditos supplementares. Excessos taes, entretanto, não seriam possiveis, naquelle paiz, si o seu Tribunal de Contas exercesse a funcção preventiva do congenere no typo belga-italiano.
«As barreiras longinquas da contrasteação a posteriori, portanto, já não são sufficientes. Sob a accumulação, crescente sempre, das operações de receita e despeza e a constante mobilidade dos titulares das pastas ministeriaes, as verificações, para ser efficazes, carecem de penetrar até ao intimo dos factos contemporaneos. Cumpre estreitar nas formalidades mais promptas a responsabilidade dos Ministros; cumpre esclarecer o parlamento do modo mais immediato e incessante ácerca da execução de sua vontade. Ora, nenhuma autoridade, a não ser o Tribunal de Contas, póde exercer essa missão, hoje essencial, salvo si a quizerem attribuir ao parlamento, o que seria grande calamidade.» (STOURM: Ib., p. 606.)
Outra vantagem preciosissima desse modelo é a presteza na liquidação das contas. O Tribunal de Contas italiano opera periodicamente, todos os mezes, acompanhando as operações, á medida que se realizam, pelas contas da receita e despeza, que lhe communica o ministerio das finanças. Instruem essas contas, quanto á receita, os relatorios dos inspectores da arrecadação, e, quanto á despeza, os documentos dos desembolsos realizados. No mez terminal do exercicio recapitula o tribunal as doze liquidações mensaes, cotejando o resultado com as contas de cada ministerio e a conta geral da administração da fazenda, apresentada pelo ministro do Thesouro e preparada pela direcção geral da contabilidade publica, as quaes, nos termos da lei de 1862, art. 28, antes de submettidas á approvação das camaras, hão de passar pelo exame do tribunal verificador.
Em consequencia desse regimen, no termo dos cinco mezes subsequentes ao exercicio, «epoca em que de ordinario ainda não se teem apresentado sequer as contas individuaes dos empregados do fisco», está liquidada, na Italia, a contabilidade parlamentar. «A fiscalização parlamentar, approximada assim, dos factos financeiros, é mais efficaz do que si se houvesse de aguardar a tomada de contas individual dos funccionarios fiscaes.» (MARCÉ: La Cour des Comptes Italienne. Ann. du l'E'c. Libre des Scienc. Polit. Oct. 1890, p. 721.) Por outro lado, o systema do registro prévio sob resalva habilita o parlamento a resolver, em quinze dias, as divergencias suscitadas entre o tribunal e o governo. A raridade dos vistos sob reserva, de que em 1886-1887, por exemplo, houve apenas um caso, mostra a efficacia do freio preventivo e, ao mesmo tempo, a exaggeração de certas apprehensões, manifestadas ainda o anno passado entre nós (relatorio do Ministerio da Fazenda, na quarta sessão da vigesima legislatura, p. 25), quanto ao perigo de conflictos, nesse typo de organização, entre o governo e o tribunal.
Ora, em vez de cinco mezes, a organização franceza impõe a necessidade de dezeseis, pelo menos, numero que se receia ser elevado a dezoito, ou vinte (STOURM: Ib., p. 603-4), para a liquidação de cada exercicio financeiro.
Taes razões inclinaram decididamente a nossa escolha para o typo italiano, de que o decreto ora submettido á vossa assignatura indica apenas os traços cardeaes, e cuja organização se formulará no regulamento, para a elaboração do qual este Ministerio constituirá, sob a sua presidencia, e adstricta aos caracteres essenciaes do modelo adoptado, uma commissão de profissionaes, que dê principio immediatamente aos seus trabalhos.
Manca e impotente será, porém, a instituição planejada, si a não acompanhar a reforma geral do nosso systema de contabilidade publica. Entre nós, a esse respeito, a pratica assim como a theoria estão atrazadissimas. Dessa sciencia, por assim dizer, da escripturação fiscal e verificação das contas administrativas, dessa ragioneria, que, na Italia, como noutros paizes adeantados, tem hoje quasi uma litteratura especial e um pessoal de professores e technicos consummados, nada se conhece entre nós. Carecemos, portanto, de buscar no estrangeiro os mestres, os guias, os reformadores praticos neste ramo do serviço financeiro. E é especialmente a Italia quem nol-os póde fornecer; é lá que o governo deve procurar taes auxiliares, si quizer que esta reforma seja fructificativa, e compense amplamente, como nesse caso ha do compensar, as despezas da sua execução.
Si desse melhoramento não curarmos com affinco e promptidão, o Tribunal de Contas degenerará logo ao nascedouro, e a publicidade parlamentar nunca penetrará seriamente no labyrintho da contabilidade administrativa, onde se refugiam as mais graves responsabilidades de todos os governos.
Para se ver, por um exemplo significativo, a importancia dada a essa instituição, nos paizes onde ella assume as proporções de verdadeiro modelo, basta considerar a extensão e distribuição do seu pessoal na Italia. Alli, nos termos da lei de 1862, a Corte dei Conti se divide em tres secções, compondo-se de um presidente, dous presidentes de secções, doze conselheiros, um procurador geral, auxiliado por um ou mais referendarios, um secretario geral e vinte referendarios ou relatores. Cada secção consta de um presidente e quatro conselheiros. O quadro (ruolo organico) do pessoal das repartições integrantes do Tribunal de Contas, segundo o decreto real de 6 de março de 1881, completado pelo de 23 de julho do mesmo anno, fixa-se assim:
1ª Categoria - Directores, chefes de divisão, 1ª classe, 6; 2ª classe, 7;
- Chefes de secção, 1ª classe, 8; 2ª classe, 11.
- Secretarios, 14.
- Secretarios, 1ª classe, 39; 2ª classe, 66;
- Vice-secretarios, 1ª classe, 64; 2ª classe, 60; 3ª classe, 30;
- Praticantes, 12;
2ª Categoria. - Chefes das repartições de ordem (capi degli uffici d'ordine), 2;
- Archivistas, 1ª classe, 4; 2ª classe, 4; 3ª classe, 2;
- Agentes de ordem (ufficiali d'ordine), 1ª classe, 13; 2ª classe, 17; 3ª classe, 31.
- Officiaes e continuos, 36.
Os sacrificios do Estado com este serviço elevaram-se (exercicio de 1886-1887) a cerca de dous milhões: 1.775.000 frs. E o paiz não tem sinão que se felicitar, de dia em dia mais, por essa despeza.
Entre nós ha, na actual organização do Thesouro, elementos, que se poderão, e deverão destacar para o serviço da nova instituição, reduzindo assim o desembolso, a que ella nos obrigará. Qualquer que o dispendio seja, porém, ha de representar sempre uma economia enorme, incommensuravel para o contribuinte; comtanto que a escolha do pessoal inaugurador não soffra a invasão do nepotismo; que ella fique absolutamente entregue á responsabilidade de um ministro consciencioso, inflexivel, imbuido no sentimento da importancia desta creação; que aos seus primeiros passos presida a direcção de chefes escolhidos com a maior severidade, capazes de impôr-se ao paiz pelo valor nacional dos seus nomes e de fundar a primeira tradição do Tribunal sobre arestos de inexpugnavel solidez.
Façamos votos, para que o primeiro Ministerio da Republica organizada se mostre, como é de esperar, digno desta missão salvadora.
Rio, 7 de novembro de 1890. - Ruy Barbosa.