DECRETO N. 660 - DE 14 DE AGOSTO DE 1890
Altera a classificação da comarca de Santa Cruz de Corumbá, no Estado no Matto Grosso.
O Chefe do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil Decreta:
Artigo unico. Fica elevada á segunda entrancia a comarca de Santa Cruz de Corumbá, no Estado de Matto Grosso.
O Ministro dos Negocios da Justiça assim o faça executar.
Sala das sessões do Governo Provisorio, 14 de agosto de 1890, 2º da Republica.
Manoel Deodoro DA Fonseca.
M. Ferraz de Campos Salles.
Generalissimo - Depois de vencerem a lucta da independencia, e atravessarem os dias longos, sombrios e desanimados da gestação do pacto nacional, as colonias inglezas da America do Norte acharam-se para logo a braços com o problema, em que sobre todos se encerrava a sorte do novo governo e o porvir da grande nacionalidade nascente. Tratava-se de levantar desde os alicerces, sobre a confusão financeira dos Estados mal unidos, mal contentes, mal parados na situação de sua renda, o edificio das finanças federaes. Coube essa tarefa ao genio de Hamilton, a maior capacidade de organização assignalada entre os constructores da republica anglo-americana. Hamilton resolveu o arduo problema. Mas, na escolha dos elementos postos em contribuição para esse resultado, nunca deixou de ter em mira, acima de tudo, estas duas considerações: de um lado, a relação inseparavel entre as circumstancias financeiras da União e as circumstancias financeiras dos Estados; do outro, a conveniencia de enlaçar os Estados mediante um serio vinculo de interesses communs na administração da Fazenda Nacional.
Dahi, na primeira de suas propostas apresentadas ao congresso ácerca do credito publico, a associação, que o grande financeiro americano estabeleceu, entre a divida federal e a divida dos Estados. Não bastava ao governo da União consolidar a primeira: era necessario tambem assumir a si a segunda. Para que os Estados entrassem desassombrados na confederação, e a estreiassem sob a impressão de um pacto de fraternidade entre todos, cumpria que a administração nacional os desenvencilhasse dos pesados encargos pecuniarios, que lhes tolhiam os passos. Quaesquer que fossem os sacrificios inherentes a esse arrojo, a autoridade federal não devia hesitar, em presença, da larga compensação que os resarciria; porque essa medida era um principio de harmonia viva e de bemquerença reciproca, a que a União viria a dever os seus melhores elementos de solidez, e o seu credito no exterior uma enorme addição de força.
«Hamilton reconhecera», diz o grande historiador allemão da constituição americana, «reconhecera, com razão, que ao governo cumpria sobretudo concentrar a sua attenção na questão das finanças. Os federalistas compartiam a convicção, em que elle estava, de que nada exerceria tamanha influencia em confirmar a nova ordem de cousas como os seus projectos financeiros. Alguns acreditavam até que da adopção destes dependia a mantença da União. Talvez nisso exaggerassem; mas o certo é que nenhuma providencia do governo federal contribuiu tanto como essa, ou siquer em gráo approximado ao della, para consolidar a federação. O desprezo sem reservas com que as potencias europeas olhavam os Estados Unidos, pungia vivamente o povo americano. Mas o bom conceito das outras nações só se poderia readquirir, restaurando-se o credito da União. O unico meio de manifestar em grande e de modo tangivel as vantagens da nova constituição sobre o antigo regimen era estabelecer o confronto entre um e outro fóra da região das idéas abstractas, a proposito de algum assumpto positivo e relevante. Isso influiria propiciamente no commercio, cuja condição de abatimento cooperava mais que outra qualquer causa, para levar o publico a reconhecer a insufficiencia dos Artigos da Confederação. Dest'arte se crearia um laço real de interesse, não facil de desatar-se, entre o governo e o povo. Baldados seriam todos os esforços para dissolvel-o, em tudo quanto pudesse cahir sob a influencia dos credores da União; visto que o interesse delles havia de reclamar cada vez mais incondicionalmente a maxima estabilidade possivel para o governo federal. E esta mesma consideração applicar-se-hia aos credores dos Estados, si estes houvessem de dirigir os olhos tambem para o governo geral. No regularizar a divida da União, e avocar para esta as dividas dos Estados consistiam, portanto, as duas columnas principaes, em que a nova structura politica devia assentar. Si em vez da bancarota quasi universal, que assignalara a Confederação, o novo governo pudesse mostrar uma prosperidade firme e rapidamente crescente; si a União fosse apoiada conjunctamente pelos credores della e pelos credores dos Estados, facil lhe seria resistir a tempestades ainda maiores do que as vaticinadas pelos homens pusillanimes de 1789.» (VON HOLST: Verfassung und Democratie der Vereinigten Staaten von Amerika, c. III.)
Essa questão foi o primeiro campo de batalha, onde as tendencias particularistas, que setenta e um annos mais tarde haviam de entregar os Estados Unidos á maior das guerras as civis, ensaiaram as primeiras armas contra o principio federal, que a escola politica de Hamilton representava. Mas quer entre os amigos do celebre ministro, quer entre os seus antagonistas, ninguem desconhecia as propriedades incomparaveis de consolidação federativa inherentes á medida, planejada por elle, do pagamento da divida dos Estados pela Fazenda Nacional. «A assumpção das dividas dos Estados pela União», dizia um contemporaneo (GIBB: Mem. of Wolcott, I, p. 45), «é, de todas as providencias, a mais necessaria á existencia, do governo nacional. Si os governos dos Estados houverem de prover ao resgate de suas dividas, os seus credores combaterão sempre, como contrarias aos seus interesses, todas as disposições de caracter federal; circumstancia esta que, reunida aos habitos e ao amor proprio das jurisdicções locaes, tornará os Estados nimiamente refractarios á União. A insistencia em contrariar essa medida será o desmoronamento do governo nacional.»
Contra essa idéa se pronunciaram logo, de uma parte, aquelles Estados, que, não necessitando do beneficio, enxergavam no favor prestado aos outros uma liberalidade lesiva aos não comprehendidos na distribuição, e, de outro lado, os espiritos anti-federalistas, elemento desintegrador da União, que viam no projecto de Hamilton um artificio habilmente tecido para enleiar a autonomia dos Estados, subordinando-os pelas suas finanças ao poder federal. Já os partidos se arregimentavam, não quanto á organização constitucional, que estava firmada, mas em relação á politica do governo que a constituição produzira; e na questão da transferencia da divida dos Estados para o orçamento da União se feriu a primeira campanha politica vigorosa e bem definida na historia dos Estados Unidos.
Em auxilio da opposição abundavam argumentos contra o excesso de encargos, que essa medida ia accumular sobre os hombros do povo, contra a iniquidade flagrante de gravar-se a nação com os compromissos dos Estados, contra o abuso de favorecerem-se generosamente alguns membros da União, provavelmente os menos uteis, preteridos os mais dignos de premia nacional. As queixas mais violentas, porém, as mais sensiveis, as de repercussão mais forte no animo da população convergiam contra os calculos reconditos attribuidos ao grande ministro, cujo intuito obvio, no conceito dos seus adversarios, consistia, acima de tudo, em agigantar a força do governo federal, alargando-lhe clientela com esse grande augmento no circulo dos seus credores, desviando dos Estados para a Federação os interesses de uma classe poderosa, estreitando assim a mutua dependencia entre os Estados, e enfraquecendo, portanto, enormemente as pretensões de soberania local entretidas por uma escola fatal á União. Chegaram a ficar suspensas as deliberações nas duas camaras. «Alguns Estados foram impellidos até á orla do abysmo da separação, e a União inteira viu-se em perigo de dissolução immediata.» (TH. BENTON: Thirty Years' View, t. II, p. 173.) Mas a politica financeira de Hamilton prevaleceu, transpondo victoriosamente o conflicto, graças a uma transacção parlamentar, a que se deve a localização da capital da Republica onde a vemos, nas margens do Potomac, entre os Estados do Sul.
Entretanto, deliberando-se neste sentido, o governo dos Estados Unidos, em seus primeiros passos, não só se sobrecarregava com um fardo comparativamente assustador, como se abalançava a responsabilidades, de que não era possivel definir precisamente a importancia e as consequencias ulteriores. A confusão, nas finanças dos Estados, era, com effeito, quasi inextricavel. «Em toda a extensão do horizonte que se descortina», dizia Fisher Ames, «lavra uma grande e inevitavel confusão, apresentando-se ao espirito sob a imagem de um chaos escuro, profundo, temeroso, impossivel de reduzir-se á ordem, si o espirito do architecto não for de uma lucidez, de uma capacidade e de uma força correspondentes á crise.» Em summa, a desordem financeira, segundo o testemunho do historiador das finanças americanas, poder-se-hia comparar «á da França após a morte de Luiz XIV, quando, ainda entre financeiros, eram extremamente vagas as noções ácerca, do estado da divida nacional, sua natureza e sua somma.» (BOLLES: The Financial History of the United States, vol. II, p. 27.)
Não obstante, os estadistas americanos não recuaram ante as incertezas e os terrores da situação. A incorporação da divida dos Estados ao passivo federal passou definitivamente no congresso, e recebeu a sancção de Washington. Com esse acto assumia o novo governo um compromisso, cuja importancia se elevava a vinte e um milhões e quinhentos mil dollars, emittindo-se para esse fim um emprestimo publico. Em virtude dessa operação, autorizada pelo acto legislativo de 4 de agosto de 1790, os Estados tornaram-se devedores ao governo federal, que tomou a si o encargo de saldar-lhes os debitos, libertando-os da pressão dos credores particulares.
Essa providencia, que, reunida á da consolidação geral da divida publica, «ergueu o credito do paiz de um estado de prostração absoluta a uma alta eminencia» (HAMILTON, Works, vol. VI, pag. 640), representava para o Thesouro o peso de uma responsabilidade igual a quasi o sextuplo do valor da receita annual da federação, que então era apenas de $4.000.000, nivel de que subiu a uma altura superior hoje a $300.000.000. A população do paiz inteiro reduzia-se a menos de metade da de Nova York e suas dependencias em nossos dias. A importação não passava de $23.000.000, e de $20.000.000 a exportação.
O decreto que ora vos propomos, inspira-se nesse aresto immortal, ao mesmo passo que attende a necessidades urgentes da nossa posição. Ella é incalculavelmente mais favoravel do que a dos Estados Unidos naquella epoca. Não podemos, portanto, hesitar ante a obrigação, que as circumstancias nos dictam, de amparar fraternalmente os Estados nos seus passos iniciaes para a rehabilitação pelo regimen federativo.
A responsabilidade, que, com esse intuito, vos aconselhamos assumir, corresponde a um capital de cincoenta mil contos, o qual representa approximativamente a terça parte da nossa receita. Em proporção, pois, é mais de dezeseis vezes inferior ao onus assumido para fim semelhante, nos fins do seculo passado, pelo governo da União Americana.
Por outro lado, os deveres da União, aqui, para com as nossas antigas provincias, são mais estreitos, mais imperativos. Alli eram Estados, que tinham cada um seu berço, seu regimen, suas instituições separadas. Republicas distinctas, «sem affinidades perfeitas de origem, divididas nos interesses, quasi inimigas», apenas as punham em commum as suas raizes primitivas na mãe patria, a lucta simultanea pela independencia e a identidade da sujeição colonial. Não havia, porém, entre elles organização nacional. Tinham vivido separadamente, sob cartas diversas, e pegado em armas cada, qual sobre si contra a oppressão da mãe patria. Podia-se dizer, pois, que a cada um delles exclusivamente cabia a responsabilidade de sua situação, e deviam, portanto, liquidar cada um com os proprios recursos os seus embaraços financeiros. Nós, porém, sahimos da communhão de uma monarchia unitaria, de um imperio centralizado. A nação inteira vivia sob o dominio das leis feitas por uma só assembléa, na qual todas as provincias se representavam, e os seus presidentes eram obra do governo, que essa assembléa autorizava e sustentava com os seus votos. Cada uma dellas, portanto, era parte na politica do paiz inteiro e solidaria na administração de todas. Cada uma tem a sua cumplicidade positiva nos males, que affligem as outras.
A par das razões moraes, avultam igualmente as razões economicas. Não podem haver boas finanças na União, si os Estados que a compoem, impossibilitados de acudir a compromissos instantes e sagrados, inhibidos de consolidar a sua divida dispersa, virem-se paralysados entre as consequencias funestas do regimen extincto e as severas exigencias do novo regimen. De Estados encravilhados e perseguidos por credores não se poderá jámais constituir uma federação prospera e estavel. E' mister resgatal-os da escravidão financeira do passado, para os entregar válidos, confiados, altivos ao seu grande futuro.
Nem se diga que as dependencias creadas por esse acto de liberalidade federal viriam diminuir a autonomia dos Estados favorecidos, sujeitando-os pela subordinação da necessidade á preponderancia das influencias centraes. Caberia esse temor, si se tratasse de populações decadentes, de regiões estragadas, de Estados irremediavelmente condemnados á impotencia e á pobreza. Felizmente, porém, a situação é bem diversa, é de todo em todo opposta. Todas as antigas provincias encerram no seu seio elementos de riqueza exuberantes, prodigiosos, que a centralização abafava, e que ao primeiro influxo da federação republicana já se estão manifestando em fructos inesperados. Não corremos, pois, o risco de vel-os na posição de devedores atrazados, insolventes e captivos á dureza do credor. Alguns saldarão, até, os seus compromissos antes do termo, e já reclamam, nos seus contractos, a clausula da faculdade de resgate antecipado. O que se muda na situação dos Estados, pelas relações que este decreto vem estabelecer entre a União e elles, é tudo a beneficio da independencia destes, que, achando-se com a sua divida regularizada, com os seus compromissos unificados e attenuados, com o seu credito restabelecido, poderão consagrar livremente a sua attenção aos interesses do seu desenvolvimento economico e administrativo, fóra da tutela de influencias estranhas. A interferencia da garantia federal será simplesmente uma condição de tranquillidade para elles, que não se verão inquietados pela multiplicidade dos credores, pelas impaciencias da usura, pela variedade de onus entre transacção e transacção, pela inconstancia do mercado financeiro no interior e no exterior.
Perante o estrangeiro esta medida será mais uma prova do cuidado, com que zelamos a reputação do paiz, em material de compromissos publicas, empregando todos os meios, para que não perigue o credito da administração nacional ou local. Tem tido o Governo Provisorio a fortuna singular de atravessar nove mezes de transformação revolucionaria, sem contrahir emprestimos, sem emittir papel-moeda, sem crear impostos, fontes onde quasi invariavelmente iam beber os ministerios da monarchia, ainda quando nas mãos dos seus mais illustres financeiros. Agora mesmo continuamos a estar seguros e desembaraçados, no que respeita aos compromissos nacionaes. Não necessitamos de pedir nada ao credito. E, si a Fazenda continuar a ser norteada por uma orientação regular, si o eleitoralismo não succeder ao parlamentarismo, tirando á administração federal a sua independencia, a sua pureza, a sua força, a obra do futuro congresso, aliás sempre difficil, será levada a bom exito, desde que a representação nacional reuna em seu seio espiritos capazes de encarar os nossos grandes problemas de organização, e, no tocante especialmente ás finanças, fundar o novo systema tributario sobre as bases lançadas pela Constituição de 22 de junho. Prestando, pois, em taes circumstancias a garantia geral, afim de permittir aos Estados a acquisição dos recursos necessarios á liquidação do espolio oneroso da monarchia, o Governo dará a ver ás nações que acompanham com curiosidade as phases desta revolução o sentimento de solidariedade nacional que anima as partes do grande todo brazileiro, a confiança absoluta com que no paiz se aprecia a estabilidade da fórma federativa, a impossibilidade, emfim, da desaggregação deste organismo poderoso e indissoluvel.
Muitos Estados não carecem de quinhoar neste auxilio. O de Minas, por exemplo, regularizou os seus compromissos mediante um emprestimo de dez mil contos no Banco dos Estados Unidos do Brazil. O do Paraná desafogou-se, por uma transacção consideravel com o Banco União de S. Paulo. Outros, dos bancos de circulação creados pela Republica, e a que ella, em grande parte, deve a notavel actividade productora a cujo espectaculo assistimos, poderão entrar em operações semelhantes. Alguns Estados já venceram a difficuldade por meio de outros emprestimos internos, concluidos graças á intervenção protectora do Governo Federal. Em consequencia, o limite estabelecido de 50.000:000$ marcará talvez o maximo das necessidades, a que virá prover o emprestimo externo.
Neste, o papel que se reserva o Governo Federal, é meramente o de mediador benevolo para com os Estados e moralizador severo da operação.
O primeiro destes dous pensamentos manifesta-se nas disposições que:
1º, possibilitam os emprestimos, prestando-lhes o endosso da União;
2º, uniformizam o typo das operações, permittindo aos Estados mais fracos, menos prosperos, condições que, sem a garantia federal, só seriam accessiveis aos mais acreditados e ricos;
3º, franqueam a delegacia do Thesouro em Londres para o serviço dos juros e amortização.
O proposito de moralizar a operação, escudando, ao mesmo tempo, os interesses reaes dos Estados, traduz-se nos artigos do decreto, que
1º commettem ao Ministerio da Fazenda a attribuição de examinar a importancia da pretensão de cada Estado, e taxar o valor do emprestimo respectivo;
2º subordinam a entrega de cada prestação á verificação previa do emprego fiel da antecedente, e
3º obrigam os Estados a discriminar renda especial para o desempenho deste compromisso.
A importancia mutuada passará directamente das mãos dos mutuantes para as dos mutuarios, evitando-se assim até a sombra de suspeita de pretender o Governo Federal abrigar necessidades suas sob a apparencia de uma liberalidade á administração dos Estados.
A todos os respeitos, pois, se nos afigura digno da vossa, assignatura o decreto, que ora vos submettemos.
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1890.
Ruy Barbosa.